Ah, se não fosse
esse meu verbo indenizatório!
Como é que eu iria
hoje te rever, com que cara reconhecer tamanhas dividas ou então me sair com
aquela confissão clássica dos inadimplentes mal acostumados com a tolerância
dos credores - devo não nego, pago quando puder.
Reconheço que de
há muito estou a te dever aqueles crepúsculos onde o vento faz a curva, nós
dois ao ar livre naquela mesa de canto da sorveteria. E nada de abricó,
jenipapo, papo de anjo.
Depois um caminhar
de quem não está nem aí para os calendários e os relógios, os pés descalços na
praia, as pernas da calça arregaçadas, e ainda assim nos molhando a mercê do se
esparramar das ondas.
Chegando a noite,
vamos esperar que a lua se acenda e se ela não se acender porque foi dormir
nada se alterará porque com lua ou sem ela os navios ao largo salpicarão suas
luzes no tempo e os maruins, ah os maruins, não desistirão da festa.
Asfalto, areia,
maruim, nós só.
Anota tudo aí,
garota, que nem o dono da quitanda. Quem mora perto da quitanda se endivida na
esperança do fim do mês. O dono da quitanda anota tudo numa caderneta.
Aquela escapulida
só de nós dois, sem ninguém ficar sabendo, por aquelas ladeiras e ruas estreitas
de Lisboa, nós insones a noite inteira no quarto do hotel e depois, sem pressa
de nada, Roma.
Anota aí que eu já
estou até vendo a mesa na calçada do restaurante da Via Veneto, onde eu prometi
ficar contigo até que sejamos, tu e eu, como sempre, os últimos a saírem.
Esse exercício de
viver com amor nos faz longevos e não nos custa quase nada. Nós mesmos, entre
nós dois, não precisamos de muito.
Sairmos de
madrugada daquela padaria que eu tanto gosto e encararmos o frio devastando o
calçadão, vencendo a pé quarteirões e mais quarteirões, nós dois soma de amor
resultado um, sem ter que esconder anel, aliança, relógio, isso não é prova de
amor? O amor tudo pode, o amor não tem medo.
Há um piano virgem
de tangos na sala e eu vou te esperar ensaiando os passos daquela valsa que eu
prometi naquela noite sair dançando contigo pelo quintal e no jardim em frente
a casa.
Azeitei as
correntes das bicicletas, testei os freios, vamos sair no domingo pedalando a
alegria num passeio sem horas. Eu sei por que elas são amarelas. Chegaram à
véspera do natal e eu quis adivinhar que a tua cor é o amarelo. Minha pedra é
ametista.
Não é que eu
queira com estas confissões, que nem são todas, te ressarcir de algum modo com
o meu verbo indenizatório.
Só quero é que
saibas que não é lábia minha isso tudo que me tem feito inadimplente em ti.
Muitas questões de
pele, de sensibilidade minha e de razões dos outros, me enlaçaram e ainda me
enlaçam em compromissos que não me fazem alheio às questões dos que diluídos em
multidões de carências já nem sabem sobre o que esperar tamanho o opróbrio da
usurpação recente.
As paisagens daqui
agora são de inundação de abandono. Como se o passado fosse só as pessoas e a
luta presente uma pecha nos que, como nós, ainda teimamos na resistência a
essas reinações e diabruras da tiazinha do momento.
Passadas essas
refregas, mulher, iremos para o nosso melhor lugar. O nosso melhor lugar é
sempre aquele onde resolvemos estar juntos.
Como aqui e agora.
Por exemplo.
0 comentários:
Postar um comentário