Aos
94 anos, o ex-presidente José Sarney está escrevendo um livro de reflexões
sobre a política que deve se chamar “Brasil em seu Labirinto”. Já alcançou um
terço do volume.
A
necessidade do país de promover mudanças no sistema eleitoral é um dos temas da
obra. “Nós temos esse voto proporcional uninominal, que é um desastre. Não
permite que nossa democracia se aprofunde”, afirma. Nesse modelo, vota-se em
pessoas, não em partidos.
Sarney
defende o voto distrital misto. Na disputa para deputado e para vereador, de
acordo com esse modelo, o eleitor vota em um candidato de seu distrito (área
delimitada da cidade ou do estado) e em uma lista de candidatos oferecida por
um partido.
De
acordo com “Sarney – a Biografia”, de Regina Echeverria, o maranhense é autor
de 38 livros, entre romances, volumes de contos, poesias e crônicas, reuniões
de ensaios e obras sobre política. Romances como “O Dono do Mar” (1995) e
“Saraminda” (2000) foram traduzidos para outras línguas.
Além
de escritor prolífico, é um leitor dedicado. Quando a reportagem esteve em sua
casa, no dia 7 de março, Sarney estava lendo “Nexus: Uma Breve História das
Redes de Informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”, do
israelense Yuval Noah Harari.
Membro
da Academia Brasileira de Letras desde 1980, Sarney acredita que a vaga aberta
na ABL com a morte do cineasta Cacá Diegues deve ficar com o diplomata e
escritor Rubens Ricupero.
José
Sarney tem as mãos levemente trêmulas e a voz frágil. Ao lado do enfermeiro, o
ex-presidente de 94 anos caminha com dificuldade. Os fios do bigode, aparado
com esmero, estão completamente brancos.
Por
outro lado, seu raciocínio se mantém afiado assim como o espírito
conciliatório. Na sala da sua casa em Brasília, decorada com pinturas de
artistas como Cândido Portinari e Burle Marx, ou na ampla varanda, de onde se
vê o lago Paranoá, Sarney recebe com frequência amigos dos mais variados
espectros políticos, do presidente Lula (PT) ao ex-presidente Michel Temer
(MDB).
No
momento em que a reportagem chegou para entrevistá-lo, no final da tarde do
último dia 7, Sarney falava por telefone com Julio María Sanguinetti,
ex-presidente do Uruguai. Sanguinetti disse a ele que pretendia ir ao evento de
homenagem ao político maranhense neste sábado, dia 15, em Brasília.
Em
15 de março de 1985, com a hospitalização de Tancredo Neves, cabeça da chapa
eleita dois meses antes no Colégio Eleitoral, coube ao vice, Sarney, assumir a
Presidência. Ele imaginava que Tancredo ocuparia o posto alguns dias depois,
mas, passadas sete cirurgias, o amigo mineiro morreu em 21 de abril.
Com
um ministério todo escolhido por Tancredo, Sarney deveria conduzir a transição
da ditadura militar para a democracia. “Fui um presidente marcado para ser
deposto, como muitos outros da história do Brasil”, afirmou.
Na
entrevista, ele diz se arrepender das críticas feitas a Juscelino Kubitschek,
lembra a depressão que teve nos anos 1980 e comenta as acusações de favorecer
deputados para que aprovassem seu mandato de cinco anos. Também se recorda da
relação com os militares, analisa as razões para que o Plano Cruzado tivesse um
desfecho negativo e critica a falta de lideranças no Brasil de hoje.
Como está a saúde do
sr.?
Estou
muito bem. Graças a Deus, estou sobrevivendo bem.
Em 1984 e 1985, houve
muita resistência para que o sr. integrasse a chapa com o Tancredo?
Quase
nenhuma resistência. O Aureliano [Chaves, vice de João Figueiredo, com quem
rompeu] quase me impôs como candidato a vice-presidente, ele disse que sem o
Sarney não havia Aliança Democrática.
Depois
que renunciei ao PDS [partido que apoiava a ditadura], achava que não teria
nenhuma presença na política nacional. Mas, a partir daí, o Ulysses ficou
insistindo comigo para que eu aceitasse apoiar o Tancredo. Fizemos, então, um
grupo: eu, Aureliano, Marco Maciel.
Aureliano teve um
peso grande nessa decisão?
Teve
um peso muito grande, me obrigou a aceitar. Para que eu não fosse candidato só
do Aureliano, o Tancredo mandou me chamar a Minas Gerais e disse que, se eu não
aceitasse, ele não renunciaria ao Governo de Minas [para se candidatar à
Presidência no Colégio Eleitoral].
Ele
sabia que eu tinha uma grande influência no PDS e, realmente, com os nossos
delegados do PDS, nós ganhamos a eleição do Tancredo. Sem a nossa participação,
ele não teria número para ser eleito pelo Colégio Eleitoral.
Em
“Sarney – a Biografia”, a jornalista Regina Echeverria conta que o sr. estava
se tratando de uma depressão nessa época.
Tive
uma depressão, mas superei esse problema rapidamente. Essa é a pior doença que
tem no mundo porque é uma doença da alma, não é do corpo.
Qual é a memória mais
forte que o sr. tem do Tancredo?
Fui
amigo do Tancredo desde o Rio de Janeiro, quando eu era deputado federal [na
segunda metade dos anos 1950]. Sem muita intimidade, mas com um nível de
aproximação razoável.
Eu
participava da UDN como vice-líder do Carlos Lacerda. O Afonso Arinos foi quem
lançou o meu nome para vice-liderança. Tinha uma ligação com todos aqueles
homens mais importantes da UDN, como Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar Baleeiro e
Bilac Pinto.
O sr. era oposição ao
Tancredo nessa época?
Sim,
o Tancredo era do PSD, e eu, da UDN.
A
UDN fazia uma oposição muito grande ao Juscelino Kubitscheck [também PSD], e eu
fui muito injusto com ele. Bem depois, o Juscelino foi cassado, no período em
que eu era governador do Maranhão. Ele foi ao Maranhão, e eu ofereci um almoço
para ele. Juscelino me disse que entrava pelo fundo do Palácio da Liberdade, em
Belo Horizonte. O então governador de Minas não queria que ele entrasse pela
porta da frente para não comprometê-lo com a “revolução” [ditadura militar].
Eles chamavam de “revolução”.
O sr. falou sobre o
Tancredo da década de 1950. E o Tancredo dos anos 1980?
Depois
que eu deixei a presidência [do PDS], o Tancredo me visitou para pedir que eu o
apoiasse e depois me chamou a Minas Gerais. Mas, nesse período, eu tinha maior
relação com o Ulysses, que fez uma catequese muito grande comigo. Eu digo que o
Ulysses me namorou dois meses para essa posição [risos].
Qual foi o principal
desafio nesses primeiros momentos na Presidência?
Eu
não queria assumir a Presidência, queria esperar o Tancredo [que estava
hospitalizado]. Houve a necessidade de assumir porque todos achavam, inclusive
Ulysses e Tancredo, que, depois de uma luta tão grande para chegar àquele
momento, se nós tivéssemos qualquer dúvida sobre quem assumiria, corríamos um
risco grande de ter problema. Walter Pires, que era ministro do Exército…
Do Figueiredo, não é?
Do
Figueiredo. Quando Leônidas Pires Gonçalves, Ulysses e Fernando Henrique
estiveram com ele para comunicar que eu assumiria a Presidência, Walter Pires
disse que iria imediatamente para os quartéis para evitar minha posse.
Figueiredo achava que deveria ser o Ulysses. Naquele instante, nós corríamos o
perigo de ter uma volta da assunção dos militares.
Meu
primeiro desafio era o de legitimar-me como presidente da República. Durante
todo o tempo, tive que fazer um processo de engenharia política que assegurasse
a transição democrática. Fui um presidente marcado para ser deposto, como
muitos outros da história do Brasil.
Ulysses
dizia que não podíamos deixar que tivesse qualquer problema porque já estávamos
no processo da transição, que se completaria com a assunção de um civil à
Presidência. Não podíamos dar margem para que os militares pudessem retomar o
poder.
Foi difícil lidar com
os militares?
Não,
foi muito fácil porque eu tive o Leônidas Pires Gonçalves, o melhor ministro do
Exército que nós já tivemos. Logo que assumi, eu reuni o ministro do Exército e
os generais e disse que iria governar com duas diretrizes.
A
primeira: todo comandante tinha o dever de zelar pelos seus subordinados. Eu
era o comandante em chefe, quem zelaria pelos meus subordinados era eu. Não
queria ordem do dia com mensagens subliminares. Queria que eles levassem
[eventuais insatisfações] ao ministro do Exército e eu, como presidente, era
quem os defenderia. Os militares estavam com muito medo de revanchismo [dos
civis].
Um
dos momentos mais difíceis durante a construção da transição foi a Lei da
Anistia, e nós anistiamos os dois lados.
E
a outra diretriz: a transição seria feita com os militares, e não contra os
militares.
Houve algum momento
nos seus cinco anos na Presidência que achou que a transição corria risco?
Tivemos
muitos períodos dessa natureza. Infelizmente eu não posso revelar todos porque
muitas das pessoas que foram participantes desse tempo já morreram. Isso seria
uma motivação para tratar dos mortos, o que eu não desejaria fazer.
Durante seu mandato,
foi promulgada a Constituição. Quase 40 anos depois, como a avalia?
Foi
a Constituição possível, mas que tem sido capaz de atravessar todas as nossas
dificuldades. Entre as mais graves, os dois impeachments [Collor e Dilma] e o 8
de Janeiro.
Eu
dizia ao Ulysses que nós precisávamos fazer a Constituição porque ela seria a
estrutura do nosso projeto democrático. E saiu essa Constituição, que pode não
ter sido a melhor, mas foi a possível.
A democracia esteve
sob ameaça no 8 de Janeiro?
Eu
tinha certeza que jamais as Forças Armadas do Brasil se engajariam em um
processo daquela natureza.
Na
época da Constituição, o sr. foi acusado de favorecer parlamentares com
recursos públicos para votar pelo seu mandato de cinco anos.
Isso
era fake news, como se diz hoje. Eles falavam que eu tinha concedido algumas
emissoras de TV por meio do Antônio Carlos Magalhães, que era o ministro das
Comunicações. Mas, depois de mim, eles fizeram três, quatro vezes mais
concessões de TV.
Eu
estava abdicando de um ano do meu mandato. Cometi um erro, que foi seguir o
presidente [Eurico Gaspar] Dutra. Ele tinha seis anos de mandato e, quando
houve a Constituição de 1946, abdicou de um e passou a ter cinco anos. Com
isso, todo mundo ficou muito satisfeito.
No
meu caso, foi diferente. Eu tinha seis anos de mandato, abdiquei de um e todos
acharam que eu queria mais um ano de mandato. Queriam que eu perdesse mais um
ano de mandato, e não aceitei.
Não
estávamos preparados para ter uma sucessão presidencial naquele momento. Eles
[os parlamentares] não sabiam, mas eu sabia que teríamos problemas
institucionais.
Qual tipo de
problema?
Tínhamos
muitos candidatos à Presidência e, naquele tempo, as Forças Armadas não
aceitavam.
Por que o Plano
Cruzado começou bem, mas acabou não dando certo?
Primeiro
porque não teve o apoio que deveria ter internamente. O Cruzado foi uma decisão
corajosa, heroica porque eu abandonei a fórmula clássica do FMI de fazer a
recessão para ter uma nova conceituação. Eu não tinha poder político para
aguentar uma recessão. Eu seria inevitavelmente deposto.
Mas
o Cruzado não foi apenas um plano econômico, foi também político porque
possibilitou que nós fizéssemos as bancadas da Câmara e do Senado, além dos
governadores, que asseguraram a transição democrática. Com isso, nós
conseguimos aprovar a Constituinte, o que era muito difícil.
O que o sr. pensa
sobre a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair
Bolsonaro e mais dezenas de pessoas?
Tenho
por norma, como é do meu feitio, nem censurar meus antecessores nem meus
sucessores. Esse assunto está sendo julgado. Agora a depredação dos três
Poderes foi uma coisa terrível. A Justiça pode e deve punir.
Como vê o terceiro
mandato do presidente Lula?
Ninguém
governa o tempo que governa. Muitas vezes, a gente governa em tempo de fartura,
às vezes, de escassez, de problemas externos. Lula vive as circunstâncias desse
tempo que ele está governando. Não são as mesmas em que ele governou no
primeiro e no segundo mandatos.
Mas
acho que o Lula tem sido um excelente presidente. No primeiro e no segundo
mandatos, foi extraordinário. No terceiro mandato, está indo bem também. Apenas
está enfrentando problemas que não existiram durante os mandatos anteriores.
Por
outro lado, a parte política está muito necessitada de lideranças. Os homens
daquele tempo [antes de 1964], que exerceram lideranças fortes, que deram
suporte aos presidentes, esses homens desapareceram.
Acho
que isso foi resultado de uma decisão do movimento de 64, que extinguiu os
partidos políticos e, assim, cortou a escola de formação dos líderes. Quando eu
comecei, a liderança que tínhamos no Rio era do Otávio Mangabeira, depois do
Carlos Lacerda, depois Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso… Eram pessoas
muito expressivas. Estou falando do meu caso [na UDN].
No
PSD, o outro lado, também, Gustavo Capanema, Lúcio Bittencourt. As lideranças
de hoje não inspiram uma autoridade capaz de impor à classe política decisões
de acordo com o interesse público.
À esquerda e à direita?
Os
quadros de esquerda são muito fracos. E os de direita são mais fracos ainda.
Estamos numa fase de ausência muito grande de lideranças.
O que achou de “Ainda
Estou Aqui”?
É
uma obra de arte, com uma atuação extraordinária da Fernanda Torres. Ela conseguiu
interpretar a alma da Eunice Paiva. Conheci o Rubens Paiva. Ele foi
contemporâneo meu, um homem extremamente agradável. Não demonstrava nenhuma
daquelas coisas pelas quais foi acusado. Foi um grande injustiçado naquele
tempo.
Por fim, como o sr. quer
ser lembrado?
Como
o presidente que fez a transição democrática no Brasil, que conseguiu implantar
um regime democrático duradouro, é o período mais longo da nossa história sem
nenhum hiato [de autoritarismo].
E
isso graças ao desempenho que tive na Presidência, de conciliador, de homem do
diálogo, que sempre acreditou nas instituições democráticas. Em resumo, eu
diria que a democracia não morreu nas minhas mãos e continua de maneira
extraordinária, sendo a segunda democracia no mundo ocidental.
(Folha de SP)