Francinaldo
Morais*
O
bem vence o mal/Afasta o temporal/Azul, amarelo/Tudo é muito belo (Gorpo e
Drielly, In He-Man).
Os da minha idade (49), viram/ouviram Gorpo e
Drielly, personagens da série animada He-Man, que fez muito sucesso nos anos 80
(1983-1985) cantarem a musiquinha em epígrafe. He-Man sempre terminava seus
episódios com mensagens moralizantes. O seu criador, o norte-americano
Roger Sweet, os personagens Gorpo e Drielly e/ou os dubladores brasileiros,
nenhum deles inventou a ideia de que o bem vence o mal. Trata-se de um clichê
popular muito antigo, com versões no mundo inteiro. Na bíblia há referência
neste sentido em Romanos (12: 17-21).
Em casa e no ambiente escolar, desde pequeninos,
fomos acalentados com a certeza da vitória do bem sobre o mal. Ficamos
sem saber, porém, quando e como ocorreria essa vitória. E, ainda, se teríamos
que fazer algo para que o bem triunfasse sobre o mal ou se este se liquidaria
sozinho, com o veneno da própria maldade. Hoje sabemos que o mal não se acaba
sozinho, que ele precisa ser vencido, interrompido, individual ou
coletivamente. E que não basta apenas rezar pedindo que o mal se acabe, faz-se
necessário vigiar e lutar contra ele. O mal, em verdade, comporta-se como
rizomas deleuzianos: sem raízes/fundamentos visíveis e com novos “brotos” em
qualquer ponto.
Consideremos uma hipótese: parte condicional; parte
no futuro do pretérito. Gente como Wagner Cabral, Palmério Dória e até o
jornalista José Simão veem o político José Sarney como a “encarnação do mal” no
Maranhão. Se assim é, também é verdadeiro que Roseana dá continuidade a essa
maldade. Jornais e revistas, nos idos de 80, noticiaram que Roseana estaria com
câncer e assim teria sua vida encurtada. Silogisticamente teríamos: 1.Sarney é
o mal; 2.sua filha, a continuação da maldade; e, 3.o mal por si só seria
vencido. Passados quase 30 anos daquela notícia, Roseana está com mais saúde
que muitos não portadores de câncer. Outros exemplos são possíveis.
Ouvindo recentemente a musiquinha do He-Man e refletindo
sobre um fato social de grande repercussão no Maranhão, fui transportado, à
Proust, para uma das experiências que se não foi a primeira que tive com a
maldade, seguramente tornou-se numa das mais significativas, que mais
perfeitamente minha memória selecionou e guardou. Uma experiência onde optei
por lutar e vencer o mal, interrompendo os elos da “corrente” que o liga do
passado ao presente, de uma pessoa a outra.
Aos 12 anos de idade, morava na Rua do Alecrim, 198,
Cangalheiro, em Caxias-MA. Minha mãe Florize e meu padrasto, Otaviano,
decidiram que eu começaria a trabalhar como aprendiz, na oficina para consertos
de carros, do senhor Sebastião “Barrela”, situada próximo a praça D. Luis
Marelim (da Chapada).
Nas Oficinas do Deoclécio, do Juciê, do Ernesto ou do
“Barrela”, naquela época, os aprendizes auxiliavam todos os profissionais,
independente da fase de produção que atuassem. Assim, com o apelido de Fogoió,
auxiliei o seu Dedé, eletricista; o Zé Luis, funileiro; o Claudinho,
pintor; o Zé Maria, que era uma espécie de encarregado, e até mesmo o “Pêdo
Véi”, que nunca soube direito o que fazia na Oficina. “Pêdo Véi” vivia com uma
peixeira na cintura, à mostra, tinha o hábito de ranger os dentes (bruxismo) e
gostava de gritar com os aprendizes, sempre com uma “cara feia”. Todos os
aprendizes tinham medo dele.
Aos sábados havia faxina na Oficina, entrega de veículos
e – o que era melhor! -, os pagamentos semanais. Era um sábado, à tarde. A
maioria dos trabalhadores esperava “Barrela” para o costumeiro pagamento.
Alguns deles, sentados em pequenos bancos improvisados; outros, no chão,
recostados em paredes, veículos ou forquilhas. O único que ainda trabalhava era
o Zé Maria a certa distância dos outros.
Aproximei-me de “Pêdo Véi”, que havia me chamado,
gritando, como sempre. Recebi a ordem de ir até o almoxarifado, apanhar com as
mãos umas cinco ou seis “pedras”, dentro de um recipiente azul, levá-las até um
tanque que ficava no centro da Oficina, molhá-las, mantendo-as nas mãos, e
retornar até ele.
Pareceu-me fácil, mas na hora não entendi por que alguns dos
que estavam próximos a “Pêdo Véi”, sorriam disfarçadamente. Com as “pedras” nas
mãos, em meio a um pouco de água que lutava para manter, senti que uma
“fervura” se intensificava, resultante da reação da mistura água-pedras.
Acelerei os passos para chegar logo até “Pêdo Véi” para
entregar-lhe as tais “pedras”, quando percebi que este e os demais trabalhadores
no seu entorno gargalhavam, olhando e a pontando para a minha situação.Quando
passava próximo a Zé Maria, o único que parecia não sorrir, este me falou, com
muita autoridade: -- Fogoió, joga essa “porra” no chão e vai lavar suas
mãos! Obedeci. Joguei as pedras no chão e saí correndo até o tanque.
Minhas mãos estavam em “carne viva”.
Depois de algum tempo -- meses, talvez--, aproximei-me de
“Pêdo Véi”, pois considerei que ele havia se tornado meu “amigo”.
Iniciamos uma conversa sobre um tema corriqueiro na Oficina e dentro do
colóquio perguntei-lhe por que tinha ordenado que eu molhasse aquelas “pedras”
de carbureto (carbureto de cálcio, CaC²), com as próprias mãos, uma vez que ele
sabia que eu poderia machucar-me seriamente. A resposta que “Pêdo Véi”
apresentou ajudou-me a entender a força que o mal exerce nas sociedades: __
Ora, Fogoió, quando eu era aprendiz fizeram o mesmo comigo. Nunca esqueci
que ouvindo aquele homem que, à época, devia ter 40 anos de idade, senti ao seu
respeito um misto de compaixão e revolta.
Concluí, dias depois àquela experiência, que me
restavam dois caminhos: dar continuidade ao mal ou interromper a sua
“corrente”, evitando que outro aprendiz passasse pelo mesmo constrangimento
iniciativo. Optei pelo segundo caminho. Anos depois entendi melhor a noção de
“corrente” do mal, lendo um dos volumes da Tragédia Burguesa(1939),
de Octávio de Faria(1908-1980).
(*) Professor de História, membro do IHGC e
acadêmico de Direito.