The
Intercept Brasil
Levou
menos de um mês para o desembargador Erivan Lopes, então presidente do Tribunal
de Justiça do Piauí, levar a melhor num acordo contra três jornalistas em 2016.
Ele se irritou com uma reportagem que dizia que sua filha, servidora do
Judiciário piauiense desde 2011, tinha sido favorecida com uma transferência
para exercer cargo com gratificação no Tribunal de Justiça do Maranhão, antes
de cumprir os três anos de estágio probatório.
O
magistrado ganhou quase R$ 16 mil de indenização por difamação, e a reportagem
foi excluída dos sites em que foi publicada. Alguns veículos que replicaram a
matéria também publicaram retratação. Já os jornalistas tiveram que pedir
desculpas na audiência e publicar um texto admitindo que erraram como parte do
acordo, embora não haja o reconhecimento judicial de que a difamação ocorreu de
fato. O resultado da audiência também foi rapidamente anunciado no site do
tribunal, sob o título “Jornalistas que difamaram presidente do TJ-PI vão pagar
indenizações”. Profissionais da imprensa do estado que leram aquele texto
entenderam o recado: não mexam com o desembargador Lopes.
Três
anos depois, contudo, o jornalista Arimatéia Azevedo mexeu com o magistrado.
Ele cobre a política e a polícia do Piauí há cinco décadas e, em julho de 2019,
teve acesso a informações exclusivas sobre uma denúncia feita ao CNJ pelo
Ministério Público do Piauí. O desembargador Lopes havia sido acusado de
comprar um terreno sem documentos e depois usar da sua influência para
legalizar a terra – a tradicional grilagem. Azevedo publicou reportagens e
notas sobre o caso no seu site, o Portal AZ, e em uma coluna que mantinha no
Jornal O Dia, do Piauí. Não deu outra – o jornalista foi processado por Lopes.
Embora não haja uma relação direta entre o que aconteceu nos anos seguintes,
chama atenção que após contrariar o desembargador, Azevedo tenha passado a
sofrer censura na sua atividade profissional e a enfrentar uma série de outras
denúncias que culminaram em processos por estelionato e extorsão e em mandados
de prisão em 2020, 2021 e 2022.
Em
resposta aos questionamentos enviados ao desembargador, ele afirma que tem
“apreço e respeito à liberdade de imprensa”, e reconhece a sua importância para
a democracia. Mas, “como qualquer outro direito protegido pela Constituição, a
liberdade de expressão encontra limites, de modo a não ofender o direito à
honra, à intimidade, à privacidade e à imagem das pessoas”. O magistrado diz,
ainda, que busca inibir os ataques contra a sua honra “com o amparo das normas
legais”.
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Jornalista Arimatéia Azevedo |
De
norte a sul do país, magistrados têm interferido na liberdade de imprensa e
ganhado um bom dinheiro com isso. Mapeei uma série de casos em que membros do
judiciário seguiram o exemplo do desembargador Lopes: desgostosos com o que
leem, apelam a colegas de profissão para calar jornalistas. Na maioria das
situações, há também pedidos de indenização que chegam a milhares de reais,
extrapolando os valores cobrados em ações do mesmo tipo, mas que não têm a
imprensa como alvo. Com dívidas judiciais, a sobrevivência financeira –
principalmente de profissionais independentes ou de pequenos veículos de
comunicação – é dificultada.
Conseguir
informações oficiais sobre esses processos não é tarefa fácil. Pedi a todos os
estados brasileiros, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre ações de
magistrados contra jornalistas por calúnia, injúria e difamação movidas entre
2010 e 2020, mas só os fóruns do Amapá e de Roraima me responderam no prazo
legal de 20 dias. Para chegar aos casos que cito nesta reportagem, contei com
levantamentos feitos pela Associação Brasileira de Jurimetria, a ABJ, pela
Associação Brasileira de Jornalismo, a Abraji, e pela ONG Repórteres Sem
Fronteiras, além de notícias divulgadas pela imprensa.
Todos
os processos têm em comum o uso da justiça para censurar, intimidar e
prejudicar financeiramente jornalistas ou veículos. Como são ações movidas por
magistrados e julgadas entre colegas de tribunal, o corporativismo exerce forte
influência nas decisões.
Nove anos de prisão
O
inferno judicial vivido por Azevedo começou depois que o desembargador Lopes
apresentou uma queixa-crime contra o jornalista em julho de 2019. Incomodado
com as reportagens publicadas no Portal AZ sobre a denúncia de grilagem de
terras, o magistrado concluiu que Azevedo tinha a intenção de ofendê-lo
moralmente por meio de “sistemática campanha difamatória” e o acusou de
calúnia, injúria e difamação. O desembargador também pediu uma indenização por
danos morais, que deveria ser determinada pela justiça.
Por
e-mail, Lopes me disse que o jornalista, “aproveitando-se da vulnerabilidade da
minha imagem perante a opinião pública”, colocou em prática a sua “pistolagem
digital” para o ofender agressivamente com “insultos e adjetivações degradantes
até publicações mentirosas e caluniosas que abalaram minha honra e saúde” –
diferentemente, a seu ver, dos demais jornalistas e órgãos de imprensa, que
apenas noticiavam os fatos relacionados à reclamação disciplinar a que o magistrado
respondia no CNJ.
O
processo movido pelo magistrado ainda estava em andamento quando a denúncia
contra ele no CNJ foi arquivada, em setembro de 2019, e o jornalista repercutiu
a informação. Por e-mail, Lopes me disse que as reportagens reiteravam “as ofensas
criminosas”. Por conta disso, alegando “fatos novos”, o desembargador fez
pedidos mais extremos à justiça. Ele queria que Azevedo fosse proibido de
escrever reportagens envolvendo seu nome e que fossem retiradas do Portal AZ
todas as notícias que o citavam. Em caso de descumprimento, o magistrado pedia
uma multa de R$ 50 mil por matéria e, “sendo necessário”, a prisão preventiva
do jornalista.
‘Liberdade de
expressão pode ser censurada quando há excessos e abusos’.
Foram
necessários apenas dois meses para que o juiz Almir Abib Tajra Filho, da 8ª
Vara Criminal de Teresina, considerasse que os pedidos de Lopes eram
apropriados e concedesse uma liminar, em dezembro de 2019, que obrigava Azevedo
a cumprir a ordem judicial em 24 horas, sob risco de ser preso. Para Tajra
Filho, a “liberdade de expressão pode ser censurada quando há excessos e
abusos”. Em março de 2021, o processo foi concluído em primeira instância, com
a condenação do jornalista a três anos de prisão pelos três crimes de que foi
acusado. Ele recorreu e ainda aguarda decisão em segunda instância. Tajra Filho
não respondeu aos meus questionamentos sobre o caso.
Antes
dessa sentença, Azevedo já tinha sido preso em junho de 2020, devido a uma
denúncia de extorsão. Ele foi acusado de cobrar R$ 20 mil para retirar do ar
uma reportagem sobre o erro médico de um cirurgião, que havia esquecido a gaze
dentro de uma paciente. O inquérito sobre esse caso foi instaurado no dia 5 de
junho pelo Grupo de Repressão ao Crime Organizado, o Greco, e andou rápido. No
dia 11, policiais entraram na casa do jornalista para cumprir um mandado de
prisão preventiva e apreender seus celulares. Curiosamente, algum tempo depois
dessa operação, a imprensa passou a receber vazamentos de informações que só
estavam nesses aparelhos, inclusive contatos da lista telefônica de Azevedo.
O
mandado de prisão preventiva foi expedido pelo juiz Valdemir Ferreira Santos,
da Central de Inquéritos. Ele também proibiu o jornalista de publicar matérias
que citassem o médico, o Greco ou qualquer um dos policiais da unidade. Entre
abril de 2020 e março deste ano, o magistrado exerceu uma função da confiança
do desembargador Lopes, que era o corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do
Piauí – Santos foi seu juiz auxiliar.
Por
e-mail, o magistrado alegou que, por lei, é proibido de se manifestar sobre
processos em andamento, mas destacou que “em todos os referidos procedimentos,
não se investiga o exercício constitucional do direito fundamental da liberdade
de expressão, e sim a suposta prática de delitos graves de extorsão”.
Azevedo
tem 69 anos e, à época, sequer conseguiu da justiça estadual o direito de
cumprir prisão domiciliar, mesmo sem ter sido condenado nesse caso e com a
recomendação do CNJ para que os magistrados reavaliassem a situação dos idosos
em prisão provisória por conta da pandemia. A decisão só foi revertida cinco
meses depois, em novembro de 2020, por decisão unânime do STJ. Para a relatora
do pedido de habeas corpus, ministra Laurita Vaz, não existiam motivos para
prendê-lo, especialmente porque o crime não teria sido cometido com violência e
não ficou comprovado que o jornalista oferecia algum perigo caso fosse solto.
Para o ministro Rogério Schietti, a medida mais estranha e “desproporcional”
foi a proibição do exercício da profissão. O caso segue em andamento e ainda
não teve decisão.
Depois
do habeas corpus do STJ, Azevedo voltou ao trabalho, mas foi novamente preso em
outubro de 2021, por outra denúncia de extorsão. O mandado de prisão preventiva
é do mesmo juiz Santos, que tem cargo de confiança do desembargador Lopes na
Corregedoria do TRE do Piauí. Dessa vez, a prisão foi justificada por uma
investigação da Polícia Civil, que apontou que Azevedo e o advogado Rony Samuel
estavam tentando tirar dinheiro do empresário Thiago Duarte, proprietário da
empresa Saúde e Vida, por meio de notas publicadas no Portal AZ. Tendo o
advogado como fonte, o jornalista publicou em sua coluna que o empresário tinha
recebido do governo do Piauí pagamentos suspeitos por serviços que não foram
comprovadamente oferecidos.
O
curioso nesse caso é que o advogado disse, em depoimento à polícia, que
repassou as informações a Azevedo porque queria pressionar o empresário Duarte
e que o jornalista não sabia das suas verdadeiras intenções. Por meio de lobby,
Rony conseguiu que o governo quitasse um débito de quase R$ 500 mil com a
empresa Saúde e Vida e ele esperava receber uma comissão por isso, o que não
aconteceu. Mesmo assim, o advogado não foi preso, enquanto Azevedo ficou na
cadeia por 48 dias, até conseguir um habeas corpus para cumprir prisão
domiciliar com tornozeleira eletrônica.
A
prisão mais recente do jornalista aconteceu em março de 2022, após sua
condenação por estelionato a nove anos de cadeia em regime fechado. Em uma ação
movida pelo Ministério Público do Piauí, o jornalista é acusado de falsificar
certidões da Receita Federal para receber R$ 68 mil de um contrato com o
governo estadual.
Embora
três pessoas tenham sido processadas, apenas Azevedo foi condenado pelo juiz
Ulysses Gonçalves da Silva Neto. A denúncia contra Maria Thereza Azevedo, que é
citada no processo como dona do Portal AZ e é filha do jornalista, foi separada
em outro processo que está em andamento. Já Welson Souza Costa, que tinha 1% do
capital social do site, foi absolvido. O juiz entendeu que ele estava alheio às
“questões gerenciais e diretivas” do veículo e que executava apenas “afazeres
de menos importância”.
Para
Azevedo, porém, a sentença foi a prisão, mesmo com a condenação apenas em
primeira instância. Ele sequer poderia recorrer em liberdade, devido à sua
“periculosidade social”, principalmente por causa do “fácil acesso que o réu
tem à internet e a dispositivos que permitam continuar utilizando seu jornal, o
Portal AZ, como forma de perpetrar crimes”. O jornalista ficou na cadeia pouco
mais de um mês e conseguiu um novo habeas corpus. Atualmente, segue cumprindo
prisão domiciliar, usando tornozeleira e impedido de exercer a profissão.
Por
telefone, a filha do jornalista, Haidyne Azevedo, me disse que existe um
“complô judicial” contra seu pai. “É uma articulação voltada a criminalizar o
exercício da sua atividade jornalística para que ele perca a credibilidade,
tenha honra, reputação e saúde atingidas”, acredita. Já o desembargador Lopes
diz que essa “narrativa” de perseguição por parte de autoridades do Judiciário
a um jornalista sério e respeitado é falsa. “O fato público e notório é que ele
há muito tempo faz uso criminoso da profissão para caluniar e extorquir pessoas
na busca de proveito financeiro”, diz Lopes.
Para
Giuliano Galli, coordenador da área de Jornalismo e Liberdade de Expressão do
Instituto Vladimir Herzog, a tentativa de censura e o assédio judicial a
Azevedo se tornam mais evidentes quando se juntam todas as peças de como a
justiça respondeu às denúncias contra ele e os termos usados na última
condenação. “Falar que um jornalista representa periculosidade social para
pedir a sua prisão é um absurdo”, afirmou. “Sem entrar no mérito da culpa, pois
isso cabe à investigação, defendemos que os profissionais tenham direito a um
sistema de justiça de forma ampla e que qualquer acusação seja investigada
dentro da lei, não de uma forma abusiva, como está acontecendo nesse caso”.