E foi assim que por volta da meia
noite, já começando o Dia da Mentira, 1º de abril, a redação do "Jornal do
Dia", na Rua de Santana, em São Luis, Maranhão, não levando a sério o que
o rádio dizia sobre uma insurgência militar em Juiz de Fora, Minas Gerais,
fechou a primeira página com a manchete de uma só palavra em letras enormes –
GORILAS.
Num canto, em cercadura, um
"Manifesto ao Povo Maranhense", em defesa do mandato constitucional
do Presidente da República, João Goulart. Assinavam-no – Bandeira Tribuzi, pela Frente de
Mobilização Popular; Manoel Vera Cruz Marques, pelo Pacto de Unidade e Ação
Sindical e Edson Carvalho Vidigal, pela União Maranhense de Estudantes
Secundários.
Sim, eu mesmo numa das minhas várias
militâncias. Jornalista de Oposição, trabalhava num jornal de Oposição.
Estudante secundarista, era Vice-Presidente da UMES. Político de Oposição, já
era àquela altura Vereador em Caxias, à época o segundo maior colégio eleitoral
do Estado. E na Câmara, era o Líder da Oposição. Uma bancada de três contra
nove governistas.
Tudo aparentava normalidade, tanto que
nos primeiros dias após o golpe ainda ensaiamos passeatas. Lembro que saímos
num fusca com um megafone e parando à frente de uma unidade militar gritamos
palavras de ordem, em sucessivas atitudes de muita provocação.
Eu acreditava tanto na força da ordem
constitucional democrática que andava com um exemplar de bolso da Constituição
dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, como se aquele livrinho tivesse o condão
de mandar para o inferno os demônios do autoritarismo que se arreganhava. Nem
percebi que alguns mais atuantes naquela resistência já estavam saindo fora.
Minha mãe me ensinou que "quem não deve não teme" e então fiquei na
ilha sem me esconder em canto nenhum.
No Liceu Maranhense, onde cursava o
ginásio, turno da manhã, meu nome foi riscado da lista de presenças. Mais uma
vez, provocativamente, esperei antes de cada aula que todos os nomes fossem
chamados até que, ao final, omitido o meu, eu fosse reclamar com o professor.
Ele mostrava o risco firme, em cor vermelha. Já estava expulso do colégio e não
sabia.
Na Praça João Lisboa, não percebendo
que os agitadores de sempre – hoje seriam chamados de formadores de opinião –
desapareciam. Não me incomodei. Segui aparecendo. Eu que era apenas o que
sempre fui e continuo sendo - um democrata,
um legalista.
Até que surgiu um jipe verde-oliva sem
capota na porta do colégio e me levaram ao Quartel do 24/BC. Isso foi no dia 14
de abril de 1964. Foi engraçado no inicio. Depois não teve graça nenhuma. Os
caras mandaram me recolher num cubículo, espaço só para um, que ficava ao lado
do Corpo da Guarda.
Fiquei ali dez dias e depois, sem mais
nem menos, me soltaram. Foi quando fiquei sabendo que os mandatos, o de
Vereador e o de Vice da UMES, haviam sido cassados. Outra vez, sem perceber que
estava provocando os vencedores, cutucando vara com onça curta, saí atrás de
medidas legais para reaver a cadeira na Câmara.
Num outro dia, que não me lembro, mais
um jipe, talvez o mesmo, parou pela manhã na porta do "Jornal do
Dia", na Rua de Santana, novamente me levaram para o Quartel do 24/BC.
Deixaram-me num corredor aguardando. Passou um Capitão, conhecido do meu
bairro, encarregado do IPM dos estudantes (Inquérito Policial Militar). Olhou o
relógio, disse que ia almoçar e que depois falaria comigo.
Daí a pouco passaram dois soldados levando
uma cama de solteiro, depois outros dois levando um colchão e roupa de cama.
Nem desconfiei. E aí me levaram para um alojamento onde já estavam presos com
cadeado e tudo outros líderes do movimento estudantil.
Em grupo, a raça humana se dá melhor.
Soubemos superar o tédio, não cair na depressão. Das visitas familiares ficava
açúcar, limão e na garrafa térmica não café, mas algum destilado. Desses
contrabandos fazíamos caipirinhas deliciosas. Sem gelo, mas deliciosas.
Instituímos a República dos Presos
Políticos e na Constituição havia um artigo, no Capítulo dos Direitos e
Garantias Individuais, que o Cidadão poderia perder todos os direitos se fosse
declarado solto, mandado de volta à liberdade. Isso tudo escrito.
Tinha ainda a estória com que nos ameaçavam
sobre um navio que estaria a caminho da ilha para levar a nós todos para a
prisão de Fernando de Noronha, onde já estavam Miguel Arrais e outros.
Nos banhos de sol reencontrávamos os
presos de outras celas – Tribuzi, José Bento, José Mário, Sálvio Dino. Não
podíamos conversar muito e vi algumas vezes dois militares no telhado do
quartel nos filmando ou fazendo de conta que nos filmavam.
Um dia chegou um General de Fortaleza,
da 10ª Região Militar, e o Capitão do IPM levou-o ao alojamento onde estavam os
comuno-subversivos do movimento estudantil no Maranhão. Éramos quase vinte, se
bem me lembro.
Imaginem a cena. Os dois oficiais
fardados, no que eles acreditavam estarem prestando o melhor serviço ao País e
nós jovens idealistas, legalistas, detrás das grades, sendo mostrados ali como
troféus da revolução deles.
O Capitão do IPM fumava
"Minister" com filtro e arrisquei filar um. Aí o sua excelência se
deu conta de mim, ali entre os demais. E me perguntou como se estivesse, de há
muito, à minha procura – o que eu estava fazendo ali. Respondi – esperando o
senhor acabar de almoçar. Dia seguinte fui excluído do banho de sol.
Cinquenta e três dias depois fui solto
por uma ordem de "habeas corpus" do Superior Tribunal Militar. Estava
preso além do prazo legal, sem culpa formada. Assim determinava a Lei de
Segurança Nacional, em vigor à época. Hoje, no atual Estado de Direito, você
pode ficar preso sem culpa formada até por mais de um ano e ainda que alegue
excesso de prazo pode surgir um Parecer do Ministério Público e quase sempre um
Juiz e até Ministro concordando - se há excesso de prazo a culpa é da defesa
que provocou o atraso com os recursos que apresentou. Cínico, não? Sei de
muitos acórdãos com esses desarrazoados fundamentos.
Depois, bem. Bem depois, concluído o
IPM, decretaram minha prisão preventiva. E passei a viver um novo capítulo de
perseguições, exclusões profissionais e políticas e para nunca mais ter que
entregar meu lombo à taca dos poderosos tive que me ir embora do Maranhão
algumas vezes. Como volta e meia sou obrigado a fazer ainda hoje. Algumas
vezes.
0 comentários:
Postar um comentário