Naquele tempo, saber das coisas do resto do
mundo, só pelo rádio - Tupy, Globo, Bandeirantes, Nacional, Voz da América.
E foi assim que por volta da meia noite, já
começando o Dia da Mentira, 1º de abril de 1964, a redação do "Jornal do
Dia", na Rua de Santana, em São Luís, Maranhão, não levando a sério o que
o rádio dizia sobre uma insurgência militar em Juiz de Fora, Minas Gerais, não
escondeu logo na primeira página sua clara antipatia e oposição àquele
movimento.
Numa cercadura, num canto, um "Manifesto
ao Povo Maranhense", em defesa do mandato constitucional do Presidente da
República, João Goulart. Assinavam-no Bandeira Tribuzi, pela Frente de
Mobilização Popular; Manoel Vera Cruz Marques, pelo Pacto de Unidade e Ação
Sindical e Edson Carvalho Vidigal, pela União Maranhense de Estudantes Secundários.
Sim, eu mesmo numa das minhas várias
militâncias. Jornalista de Oposição, trabalhava num jornal de Oposição.
Estudante secundarista, era Vice-Presidente da UMES. Político de Oposição, já
era àquela altura Vereador em Caxias, à época o segundo maior colégio eleitoral
do Estado. E na Câmara, era o Líder da Oposição. Uma bancada de três contra
nove governistas.
Tudo pelos cantos da Ilha aparentava
normalidade, tanto que nos primeiros dias após o golpe ainda ensaiamos
passeatas. Lembro que saímos num fusca com um megafone e parando à frente de
uma unidade militar gritamos palavras de ordem, em sucessivas atitudes de
provocação. Eu acreditava tanto na força da ordem constitucional democrática
que andava com um exemplar de bolso da Constituição dos Estados Unidos do
Brasil, de 1946, como se aquele livrinho tivesse o condão de mandar para o
inferno os demônios do autoritarismo, que se arreganhava. Nem percebi que
alguns mais atuantes naquela resistência já estavam saindo fora. Minha mãe me
ensinou que "quem não deve não teme" e então fui seguindo em frente.
No Liceu Maranhense, onde cursava o ginásio,
turno matutino, meu nome foi riscado da lista de chamadas. Mais uma vez,
provocativamente, esperei antes de cada aula que todos os nomes fossem chamados
até que, ao final, omitido o meu, eu fosse reclamar com o professor. Ele
mostrava o risco firme, em cor vermelha. Na Praça João Lisboa, não percebendo
ainda que os agitadores de sempre já não apareciam, continuei me expondo, sem
esconder minha posição. Eu não era nada mais do que sempre fui e continuo sendo
até hoje, um legalista.
Até que apareceu um jipe verde-oliva na porta
do colégio e me levaram ao Quartel do 24/BC. Isso foi no dia 14 de abril de
1964. Foi engraçado no início. Depois não teve graça nenhuma. Os caras mandaram
me recolher num cubículo, espaço só para um, que ficava ao lado do Corpo da
Guarda. Fiquei ali dez dias e depois, sem mais nem menos, me soltaram. Foi
quando fiquei sabendo que os mandatos, o de Vereador e o de Vice da UMES,
haviam sido cassados. Outra vez, sem perceber que estava provocando os
vencedores, saí atrás de medidas legais para reaver a cadeira na Câmara.
Num outro dia, que não me lembro, outro jipe,
talvez o mesmo, parou pela manhã na porta do "Jornal do Dia", na Rua
de Santana, novamente me levaram para o Quartel do 24/BC. Deixaram-me no
corredor do quartel, aguardando. Passou um Capitão, conhecido do meu bairro,
encarregado do IPM dos estudantes (Inquérito Policial Militar). Olhou o
relógio, disse que ia almoçar e que depois falaria comigo. Logo passaram dois
soldados levando uma cama de solteiro, em seguida outros dois levando um
colchão e roupa de cama. Nem desconfiei. Não demorou, me levaram para um
alojamento onde já estavam outros presos, líderes do movimento estudantil.
Em grupo, a raça humana se dá melhor.
Soubemos superar o tédio, não cair na depressão. Das visitas familiares ficavam
açúcar, limão e na garrafa térmica não café mas cachaça. E desses contrabandos
fazíamos caipirinhas deliciosas. Sem gelo mas deliciosas. Instituímos uma
República dos Presos Políticos e na Constituição havia um artigo, no Capítulo
dos Direitos e Garantias Individuais, que o Cidadão poderia perder todos os
direitos se fosse declarado solto, mandado de volta à liberdade. Isso tudo
escrito.
Tinha ainda a estória com que nos ameaçavam
sobre um navio que estaria a caminho para levar a nós todos para a prisão de
Fernando de Noronha, onde já estava Miguel Arrais e outros. Nos banhos de sol
reencontrávamos os presos de outras celas. Não podíamos conversar muito e vi
algumas vezes dois militares no telhado do quartel nos filmando ou fazendo de
conta que nos filmavam.
Um dia chegou um General de Fortaleza, da 10ª
Região Militar, e o Capitão do IPM levou-o ao alojamento onde estavam os
comuno-subversivos do movimento estudantil no Maranhão. Éramos quase vinte, se
bem me lembro. Imaginem a cena. Os dois oficiais fardados, no que eles
acreditavam estar prestando o melhor serviço ao País e nosostros, jovens
idealistas, legalistas, detrás das grades, sendo mostrados ali como troféus da
guerra anti-revolucionária. O Capitão do IPM fumava "Minister" com
filtro e arrisquei filar um. Aí o sua excelência se deu conta de mim, ali entre
os demais. E me perguntou como se estivesse, de há muito, à minha procura - o
que eu estava fazendo ali. Respondi - esperando o senhor acabar de almoçar. Dia
seguinte fui excluído do banho de sol.
Cinqüenta e três dias depois fui solto por
uma ordem de "habeas corpus" do Superior Tribunal Militar. Estava
preso alem do prazo legal, sem culpa formada. Depois, concluído o IPM,
decretaram minha prisão preventiva.
A primeira prisão nunca se esquece.
0 comentários:
Postar um comentário