Por Edson Vidigal
Ninguém
da sua geração conseguiu impor tantas derrotas à corrupção política, à
delinquência econômica, ao narcotráfico, ao terrorismo - inclusive o de Estado,
desmantelando organizações criminosas que agiam à solta pelos desvãos dos três
poderes, sem nunca descuidar, ao mesmo tempo, da persecução implacável dos que
pisotearam, e ainda pisoteiam, os mais sagrados dos direitos, os direitos
humanos.
Baltazar
Garzón tinha 32 anos de idade quando chegou a Madrid para assumir o cargo de
Juiz Central de Instrução n.5 da Audiência Nacional.
A
aparência jovem parecia sonegar a experiência e a coragem. Logo veriam que
Baltazar Garzón não era apenas um Juiz sem vínculos pessoais importantes e
vindo do interior.
Dois
anos depois de concluir, aos 24 de idade, o curso de Direito na Universidade de
Sevilha, aprovado em concurso, foi nomeado Juiz. No ano seguinte, foi promovido
a titular da 1ª. Instância e Instrução de Villacarrillo, província de Jaén
(Andaluzia). Daí, ascendeu a Corregedor Geral para toda região.
Seu
trabalho na Audiência Nacional fez crescer a confiança popular na Justiça.
Garzón
investigou por lavagem de dinheiro o BBVA, o segundo maior banco da Espanha.
Emparedou Berlusconi, então Primeiro Ministro da Itália, por corrupção. Mandou
prender terroristas, traficantes, políticos, fechou rádios, jornais e suspendeu
o Partido Comunista, quando restou provado o vínculo com o braço terrorista do
ETA, o movimento separatista basco.
O Juiz
sem medo pensou que na política poderia ampliar os espaços da sua ação. Queria
conhecer a baleia por dentro. Na lista do PSOE, o partido que despontava
majoritário sob a liderança jovem de Felipe Gonzalez, Garzón foi o mais votado.
No
Governo, assumiu a direção do Plano Nacional Antidrogas. Renunciou ao cargo e
ao mandato denunciando que a corrupção se entranhara demais na engrenagem
estatal.
O Juiz
Garzón logo compreendeu que o PSOE tinha os votos, mas lhe faltava a
experiência para governar.
Retornando
à magistratura, cuidou de desmantelar um grupo de extermínio criado sob a
proteção do partido do Governo para matar membros e simpatizantes do ETA. Todos
os figurões que condenou e mandou prender foram indultados pelo novo Presidente
do Governo, agora de direita, José Maria Aznar.
No campo
dos direitos humanos, deixando os academicismos de lado e indo diretamente à
ação, expediu ordem de prisão do General Pinochet, acusado de mandar torturar e
matar não só milhares de chilenos, mas também cidadãos espanhóis durante a
ditadura que chefiou.
Depois
de meses na Inglaterra, Pinochet teve voltar ao Chile escudado na imunidade do
cargo de Senador vitalício, que ele criou para si antes de restituir o poder
aos civis.
Garzón
conseguiu um acordo de 8 milhões de dólares para os espanhóis vitimas da
ditadura chilena, ou familiares, pagos pela Riggs National Corp, que ajudou o
general-ditador a lavar dinheiro.
No mesmo
quesito, o Juiz sem medo abriu investigações sobre a Operação Condor criada
pela ditadura militar argentina para dar sumiço, e deu, a milhares de
opositores. As investigações ainda seguem. Muitos estão presos. O
general-ditador Jorge Videla morreu na cadeia.
O
prestígio popular de Baltazar Garzón não só na Espanha como em toda a União
Europeia cresceu tanto que organizações de defesa dos direitos humanos,
inclusive dos Estados Unidos, cogitaram indicar-lhe ao Prêmio Nobel da Paz.
Odiado
pelos nacionalistas bascos, jurado de morte pelos chefões do tráfico,
desdenhado pelas forças políticas mais conservadoras, em especial as mais
corruptas, Garzón perdeu força em sua corporação e de Juiz passou à condição de
réu, sob a acusação de ter autorizado um grampo numa cela onde estavam os
investigados de um rumoroso caso de corrupção de políticos.
Baltazar
Garzón tinha 56 anos de idade quando o Supremo Tribunal da Espanha o condenou
afastando-o da magistratura por 11 anos sob a acusação de ter ordenado a
gravação de conversas entre acusados de um caso de corrupção. Não pode
trabalhar como advogado na Espanha.
“Uma
vida inteira dedicada à magistratura e de repente te dizem que acabou. É para
ficar desolado. Compartilho da sua dor”. Disse Francisco Baena, o advogado,
impedido de recorrer da sentença porque a decisão foi unânime.
Nas
alegações finais em sua defesa, Garzón escreveu:
“O
Tribunal do homem é a sua consciência, disse Emmanuel Kant. Eu posso dizer que
minha consciência está tranquila porque tenho procurado aplicar a lei em defesa
das vítimas; para investigar crimes cuja permanência ofende a dignidade humana
e a sua impunidade transforma as instituições em inimigas do direito e a
sociedade em cúmplice do esquecimento e da omissão e da falta de memória”.
Nosso
Juiz sem medo escreveu um livro editado pela Editorial Planeta, de Barcelona,
que está na 3ª. Edição, 1.029 páginas – “Em El Punto de Mira, la forja de um
Juiz a contracorrente”. Não sei se há edição em português.
Ao
final, Garzón adverte: “Abrir la puerta a la primeira injusticia és hacerlo a
todas las que lós seguin”. (...) Agora, em tradução livre: “No mundo sempre
fará falta um Juiz para indagar, para perseguir o crime e confortar as vitimas.
Por isso, tenho a certeza de que, inevitavelmente, nunca deixarei de estar num
ponto de mira”.
Nada a
ver? Tudo a ver? Conclua você.
(Edson
Vidigal, advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho
da Justiça Federal)
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