Por Edson
Vidigal, advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do
Conselho da Justiça Federal
Ora, se o mundo desaba em tempestades de
verbos, e desaba, derramando acusações e atirando culpas e você protestando
inocência, eu não sei de nada, eu sou até inocente e ainda assim as afrontas
paradas no ar, os inquisidores em gritos mudos, os dedos em riste parados no
ar, armadilhas eletrônicas, tudo assim tão sorrateiro quanto invisíveis, convém
não se deixar acuar.
Quando você mal desperta e vê as coisas assim
e assim como se fossem lhe assar, o melhor a fazer é meditar, meditar, não se
deixando acuar, porque talvez você precise agora de muita serenidade para olhar
um pouco mais para dentro de si, até onde as lentes dos olhos da sua
consciência livre, intimoratos, possam alcançar.
É bem possível que lhe tenha chegado a hora
de dar um passeio lento no seu passado, lembrando-se daqueles quantos que nós
conhecemos na estrada e que se atrasando na marcha foram ficando, ficando. Se
atrasando e ficando para sempre para trás.
Uns não chegaram porque gastaram os seus
sonhos todos de uma só vez, querendo tudo o quanto antes ao mesmo tempo com
aquela fome de antes de ontem. Outros, por despreparo para as próximas horas,
por incompetência até para sonhar.
No coletivo, não adianta nada querer
conciliar as ações sem conciliar os sonhos. Todos, mas todos mesmo, tem o seu
direito a sonhar.
E se estamos no coletivo, melhor ainda. Um
sonha atrelado ao sonho de todos e todos sonham atrelados ao sonho de um. Isso
é como apertar ao peito hipotético mais humanidade do que Cristo. Feito
filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. (Fernando Pessoa,
Tabacaria.)
Mas agora, depois de sobrevoar num lampejo
esse estado de coisas e voltar com os olhos a por pés no chão, as mãos
cheias de indignação, vendo de perto essas incertezas carregadas de ânsias sem
idades, ainda bem, ainda bem, que não deixamos que se desprendesse
de nós esta certeza de que continuamos infensos a essas negações ao senso
comum de que o direito sem lógica e sem bom senso não realiza a justiça, só
servindo, quando muito, aos protestos das inocências.
Ah somos juristas, sim, operários do direito,
sacristões nos altares de Thêmis que ainda nos restam pelos templos judiciais,
ah somos juristas submetidos a tantas leis injustas porque mais a serviço do
Estado centralizador e a cada dia mais autoritário. Ah somos juristas, sim,
inconformados, aliás, muito inconformados.
Por que os pesos da balança pendem mais e
quase sempre a favor do Estado e seus privilegiados condôminos? (Carca, mano!) Até
quando há in dúbio não se fala mais em pro réu. Diz-se "pró
societás", o que não quer dizer nada, pois essa menção aí sai regada
por lei editada pela maioria dos que dominam o aparato estatal, leia-se,
executivo e legislativo, contando sempre com a lealdade dos juízes à literal
letra da lei. Da injusta lei.
Ah vocês que mexem com esse negócio de leis,
de judiciário, de alunos de direito; vocês que falam empolado a língua dos
códigos em demonstrações de erudição, enferrujada erudição; ah vocês juízes,
sim, também vocês juízes fiquem por aí quietos em seus marfins e não nos venham
com esses papos de cidadania, direitos sociais, cortes internacionais. É a
lógicas dos políticos vendidos, falsos hebreus nos cancelos do Faraó.
Nós, os juízes; nós os advogados; nós do
Ministério Público; nós, policiais civis federais, nós todos temos responsabilidades,
sim, com o olhar triste das crianças famintas e sem infância dos nossos 11
milhões de desempregados. Somos compromissados, sim, contra esse alheamento com
que são tratados as centenas de milhões de analfabetos contados entre crianças
e adultos neste vasto País.
Não somos indiferentes às centenas de
milhares de moçoilas das beiras de estradas e dos lugarejos distantes
engravidadas de mais bocas futuras predestinadas à fome ou à subnutrição e de
olhares que irão se abrir às carências de direitos e de futuros.
Nossa responsabilidade não ignora esse atraso
de décadas em que vegeta a maioria da nossa gente, sem água tratada para beber,
sem teto seguro para morar, sem esgotos, sem saúde pública, sem escolas de
qualidade, os ratos em festas nos lixões das ruas.
O patrimônio e a vida de cada um à mercê do
previsível assalto. Ou da morte.
Purgaremos penas noturnas infindáveis a nos
doerem na consciência se, catando e incinerando um a um os nossos erros, não
assumirmos a humildade com que devemos, de novo, nos reunir, respeitando a
capacidade de cada um para na trincheira certa, agirmos coletivamente, e
aí sim, confiantes na vitória coletiva.
É utopia? Não. É o sonho possível.
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