Minha Figura

O Mal se destrói sozinho ou precisa ser vencido?

28.11.13

Francinaldo Morais*

O bem vence o mal/Afasta o temporal/Azul, amarelo/Tudo é muito belo (Gorpo e Drielly, In He-Man).

Os da minha idade (49), viram/ouviram  Gorpo e Drielly, personagens da série animada He-Man, que fez muito sucesso nos anos 80 (1983-1985) cantarem a musiquinha em epígrafe. He-Man sempre terminava seus episódios com  mensagens moralizantes. O seu criador, o norte-americano Roger Sweet, os personagens Gorpo e Drielly e/ou os dubladores brasileiros, nenhum deles inventou a ideia de que o bem vence o mal. Trata-se de um clichê popular muito antigo, com versões no mundo inteiro. Na bíblia há referência neste sentido em Romanos (12: 17-21).

Em casa e no ambiente  escolar, desde pequeninos, fomos acalentados com a certeza  da vitória do bem sobre o mal. Ficamos sem saber, porém, quando e como ocorreria essa vitória. E, ainda, se teríamos que fazer algo para que o bem triunfasse sobre o mal ou se este se liquidaria sozinho, com o veneno da própria maldade. Hoje sabemos que o mal não se acaba sozinho, que ele precisa ser vencido, interrompido, individual ou coletivamente. E que não basta apenas rezar pedindo que o mal se acabe, faz-se necessário vigiar e lutar contra ele. O mal, em verdade, comporta-se como rizomas deleuzianos: sem raízes/fundamentos visíveis e com novos “brotos” em qualquer ponto.

Consideremos uma hipótese: parte condicional;  parte  no futuro do pretérito. Gente como Wagner Cabral, Palmério Dória e até o jornalista José Simão veem o político José Sarney como a “encarnação do mal” no Maranhão. Se assim é, também é verdadeiro que Roseana dá continuidade a essa maldade. Jornais e revistas, nos idos de 80, noticiaram que Roseana estaria com câncer e assim teria sua vida encurtada. Silogisticamente teríamos: 1.Sarney é o mal; 2.sua filha,  a continuação da maldade; e, 3.o mal por si só seria vencido. Passados quase 30 anos daquela notícia, Roseana está com mais saúde que muitos não portadores de câncer. Outros exemplos são possíveis.

Ouvindo recentemente a musiquinha do He-Man e refletindo sobre um fato social de grande repercussão no Maranhão, fui transportado, à Proust, para uma das experiências que se não foi a primeira que tive com a maldade, seguramente tornou-se  numa das mais significativas, que mais perfeitamente minha memória selecionou e guardou. Uma experiência onde optei por lutar e vencer o mal, interrompendo os elos da “corrente” que o liga do passado ao presente, de uma pessoa a outra.

Aos 12 anos de idade, morava na Rua do Alecrim, 198, Cangalheiro, em Caxias-MA. Minha mãe Florize e meu padrasto, Otaviano, decidiram que eu começaria a trabalhar como aprendiz, na oficina para consertos de carros, do senhor Sebastião “Barrela”, situada próximo a praça D. Luis Marelim (da Chapada).

Nas Oficinas do Deoclécio, do Juciê, do Ernesto ou do “Barrela”, naquela época, os aprendizes auxiliavam todos os profissionais, independente da fase de produção que atuassem. Assim, com o apelido de Fogoió, auxiliei o seu Dedé,  eletricista; o Zé Luis, funileiro; o Claudinho, pintor; o Zé Maria, que era uma espécie de encarregado, e até mesmo o “Pêdo Véi”, que nunca soube direito o que fazia na Oficina. “Pêdo Véi” vivia com uma peixeira na cintura, à mostra, tinha o hábito de ranger os dentes (bruxismo) e gostava de gritar com os aprendizes, sempre com uma “cara feia”. Todos os aprendizes tinham medo dele.

Aos sábados havia faxina na Oficina, entrega de veículos e – o que era melhor! -, os pagamentos semanais. Era um sábado, à tarde. A maioria dos trabalhadores esperava “Barrela” para o costumeiro pagamento. Alguns deles, sentados em pequenos bancos improvisados; outros, no chão, recostados em paredes, veículos ou forquilhas. O único que ainda trabalhava era o Zé Maria a certa distância dos outros.

Aproximei-me de “Pêdo Véi”, que havia me chamado, gritando, como sempre. Recebi a ordem de ir até o almoxarifado, apanhar com as mãos umas cinco ou seis “pedras”, dentro de um recipiente azul, levá-las até um tanque que ficava no centro da Oficina, molhá-las, mantendo-as nas mãos, e retornar até ele. 
Pareceu-me fácil, mas na hora não entendi por que alguns dos que estavam próximos a “Pêdo Véi”, sorriam disfarçadamente. Com as “pedras” nas mãos, em meio a um pouco de água que lutava para manter, senti que uma “fervura” se intensificava,  resultante da reação da mistura água-pedras. Acelerei os passos para chegar logo até “Pêdo Véi” para   entregar-lhe as tais “pedras”, quando percebi que este e os demais trabalhadores no seu entorno gargalhavam, olhando e a pontando para a minha situação.Quando passava próximo a Zé Maria, o único que parecia não sorrir, este me falou, com muita autoridade: -- Fogoió, joga essa “porra” no chão e vai lavar suas mãos! Obedeci. Joguei as pedras no chão e saí correndo até o tanque. Minhas mãos estavam em “carne viva”.

Depois de algum tempo -- meses, talvez--, aproximei-me de “Pêdo Véi”, pois  considerei que ele havia se tornado meu “amigo”. Iniciamos uma conversa sobre um tema corriqueiro na Oficina e dentro do colóquio perguntei-lhe por que tinha ordenado que eu molhasse aquelas “pedras” de carbureto (carbureto de cálcio, CaC²), com as próprias mãos, uma vez que ele sabia que eu poderia machucar-me seriamente. A resposta que “Pêdo Véi” apresentou  ajudou-me a entender a força que o mal exerce nas sociedades: __ Ora, Fogoió, quando eu era aprendiz fizeram o mesmo comigo. Nunca esqueci que ouvindo aquele homem que, à época, devia ter 40 anos de idade, senti ao seu respeito um misto de compaixão e revolta.

Concluí,  dias depois àquela experiência, que me restavam dois caminhos: dar continuidade ao mal  ou interromper a sua “corrente”, evitando que outro aprendiz passasse pelo mesmo constrangimento iniciativo. Optei pelo segundo caminho. Anos depois entendi melhor a noção de “corrente” do mal, lendo um dos volumes da  Tragédia Burguesa(1939), de Octávio de Faria(1908-1980).

(*) Professor de História, membro do IHGC e acadêmico de Direito.

1 comentários:

  1. É uma missão redentora, abençoada, interromper o ciclo do mal. Precisamos de mais gente com atitudes como a do jovem Francinaldo, na oficina do Barrela. Excelente texto!

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